4 poemas de Natal

Em Cruz não Era Acabado

As crianças viravam as folhas
dos dias enevoados
e da página do Natal
nasciam os montes prateados
 
da infância. Intérmina, a mãe
fazia o bolo unido e quente
da noite na boca das crianças
acordadas de repente.
 
Torres e ovelhas de barro
que do armário saíam
para formar a cidade
onde o menino nascia.
 
Menino pronunciado
como uma palavra vagarosa
que terminava numa cruz
e começava numa rosa.
 
Natal bordado por tias
que teciam com seus dedos
estradas que então havia
para a capital dos brinquedos.
 
E as crianças com a tinta invisível
do medo de serem futuro
escreviam os seus pedidos
no muro que dava para o impossível,
 
chão de estrelas onde dançavam
a sua louca identidade
de serem no dicionário
da dor futura: saudade.
 

Natália Correia, in ‘O Dilúvio e a Pomba’

 

Quando um Homem Quiser

Tu que dormes à noite na calçada do relento
numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
és meu irmão, amigo, és meu irmão
 
E tu que dormes só o pesadelo do ciúme
numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
e sofres o Natal da solidão sem um queixume
és meu irmão, amigo, és meu irmão
 
Natal é em Dezembro
mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
é quando um homem quiser
Natal é quando nasce
uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto
que há no ventre da mulher
 
Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
tu que inventas bonecas e comboios de luar
e mentes ao teu filho por não os poderes comprar
és meu irmão, amigo, és meu irmão
 
E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
és meu irmão, amigo, és meu irmão
 
Ary dos Santos, in ‘As Palavras das Cantigas’
 
 

Chove. É Dia de Natal

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.
 
E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.
 
Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.
 
Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.
 
Fernando Pessoa, in ‘Cancioneiro’
 
 
 

Ladainha dos Póstumos Natais

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
 
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
 
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
 
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
 
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
 
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
 
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
 
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
 
David Mourão-Ferreira, in ‘Cancioneiro de Natal’
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